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Quarta-feira, 23 de Abril de 2025, 07h:09 - A | A

NUNCA VOLTOU

Por que papa Francisco nunca voltou à Argentina em 12 anos de papado

Redação

 

 

Reprodução/YouTube

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Quando o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, deixou sua cidade para participar do conclave do Vaticano que elegeria o sucessor de Bento 16, certamente não imaginava que seria a última vez que pisaria em solo argentino.

 

Aos 76 anos — um ano a mais do que bispos costumam ter quando apresentam sua renúncia ao papa — ele estava longe de ser o favorito para preencher o cargo então vago, de acordo com analistas.

 

"Quando ele deixou Buenos Aires para o Conclave, ele parecia um tanto triste; estava preparando um quarto para sua aposentadoria no Lar dos Padres, no bairro portenho de Flores", disse Guillermo Marcó, padre da Arquidiocese de Buenos Aires, ao jornal argentino Clarín.

 

Entretanto, para sua surpresa — e a do mundo inteiro — o clérigo argentino de perfil conciliador prevaleceu, dando início a um papado que duraria 12 anos.

 

Gustavo Vera, um ativista contra o trabalho escravo e o tráfico de pessoas que era amigo próximo de Bergoglio, disse à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que o pontífice imaginava um papado muito mais curto.

 

 

"Ele pensava que seriam quatro anos, por causa da idade, ou porque talvez tivesse que abdicar devido a um derrame ou algo assim", disse o líder da Fundação La Alameda, que se tornou amigo do religioso quando ele ainda era arcebispo.

 

Durante o papado de Francisco, os dois trocaram centenas de cartas.

 

"Ele as escreveu com a própria caligrafia, elas foram digitalizadas e enviadas para mim", revela Vera.

 

Nessas cartas, o pontífice sempre demonstrou interesse pelo que acontecia em seu país de origem.

 

"Às vezes ele comentava sobre futebol, às vezes sobre tango, às vezes sobre eventos culturais", diz Vera, que afirma que o Papa acompanhava as notícias argentinas "detalhadamente".

 

"Francisco manteve sua conexão com a Argentina o tempo todo. Nesses 12 anos, em sua agenda sempre havia um grande número de argentinos, que compareciam a audiências, que assistiam ao Angelus [oração feita pelo papa junto aos peregrinos na Praça de São Pedro aos domingos], que tinham audiências pessoais. Seu coração sempre esteve na Argentina, de alguma forma", afirma.

 

Por tudo isso, uma das coisas mais impressionantes sobre o papado de Francisco é que em 12 anos ele nunca visitou seu país de origem.

 

Papa Francisco bebendo mate

Crédito,Getty Images / O papa era um amante de mate, tango e futebol

 

Francisco viajou para quatro dos cinco países que fazem fronteira com a Argentina: Brasil — sua primeira viagem ao exterior, três meses após assumir o cargo, em 2013 — Bolívia e Paraguai em 2015 e Chile em 2018.

 

Ele também viajou para outros países latino-americanos, incluindo Cuba, Equador, México e Peru.

 

Por que, então, ele não foi para seu próprio país?

 

A resposta revela a relação complicada que Francisco tinha com sua terra natal, onde muitos o amavam e hoje choram sua morte, mas outros tantos o consideravam uma figura controversa.

 

Um vínculo que foi se deteriorando à medida em que passava o tempo e aumentava a decepção e até mesmo o mal estar sentidos por muitos, diante do que consideravam uma rejeição da principal figura do país no cenário internacional.

 

Não podemos esquecer que o povo argentino é famoso por seu ego, algo que o próprio pontífice costumava zombar, com seu grande senso de humor.

 

Queda na imagem positiva

 

A verdade é que, embora a dor da partida de Francisco agora predomine, sua relação com seu povo se enfraqueceu ao longo dos anos.

 

O orgulho inicial sentido pela maioria dos argentinos após o anúncio de que um compatriota argentino seria o primeiro papa latino-americano deu lugar ao desencanto ao longo dos anos.

 

Foi o que revelou uma pesquisa do Pew Research Center, que mostrou que a imagem favorável do pontífice em seu próprio país recuou de 91% em 2013, para 64% em 2024, com um aumento acentuado nas opiniões negativas, que subiram de 3% para 30%.

 

Dos seis países latino-americanos pesquisados, a maior queda na percepção favorável foi registrada na Argentina.

 

Papa Francisco visita o Parque O'Higgins em Santiago, Chile, no

Crédito,Getty Images / Francisco visitou o Chile e o Peru em janeiro de 2018, mas disse que não foi à Argentina e ao Uruguai porque muitos moradores locais estavam de férias. 

 

 

Mas a desilusão de muitos argentinos com o papa transcendeu questões religiosas ou ideológicas.

 

Inclusive, não tinha relação com um tema que gerou polêmica quando ele assumiu: as críticas sobre sua atuação durante o último regime militiar argentino (1976–1983), quando era superior da congregação jesuíta naquele país.

 

Uma reportagem no jornal Página 12 afirmou que, em 1976, Bergoglio retirou a proteção de dois padres de sua ordem que realizavam trabalho social em bairros de baixa renda.

 

Os religiosos foram sequestrados pelos militares, que os mantiveram clandestinamente por cinco meses antes de libertá-los.

 

"Fiz o que pude com a idade que tinha e as poucas relações com as quais contava, para defender as pessoas sequestradas", disse Bergoglio sobre a controvérsia em sua biografia O Jesuíta, de 2010.

 

O debate sobre seu papel durante esse período sombrio foi amplamente resolvido com o surgimento de depoimentos de indivíduos perseguidos politicamente que ele ajudou a fugir do país, alguns dos quais foram reunidos no livro Salvos por Francisco, de 2019.

 

O motivo central da decepção com Francisco parecia estar em outro lugar.

 

E, ao contrário de outras figuras internacionais famosas que o país produziu, como Maradona, Messi ou a rainha da Holanda (Máxima Zorreguieta Cerruti, esposa do rei Guilherme Alexandre), Bergoglio deixou a Argentina para nunca mais voltar.

 

Toda vez que lhe perguntavam sobre uma possível viagem, Francisco dava respostas vagas.

 

"Eu gostaria de ir. É a minha casa, mas ainda não está decidido. Há várias coisas para resolver primeiro", disse ele na última vez em que foi questionado publicamente sobre o assunto, em setembro de 2024, ao retornar de sua viagem pela Ásia e Oceania.

 

 

Uma hesitação que muitos de seus fiéis locais acharam difícil de entender.

 

"A primeira coisa que qualquer atleta faz depois de ganhar um prêmio de nível mundial é voltar ao seu país para compartilhá-lo com seus compatriotas. Bergoglio não conseguiu voltar ao seu país nenhuma vez. Isso diz tudo", disse um usuário no X (antigo Twitter).

 

"Ele nunca quis voltar ao seu país, é como se Jesus nunca tivesse pregado em Jerusalém", opinou outro.

 

A ausência do pontífice foi sentida de forma mais aguda nos últimos anos, já que a Argentina enfrentou uma de suas piores crises econômicas, com inflação anual chegando a quase 300% e um aumento acentuado da pobreza, especialmente entre as crianças. 

 

"[Francisco] falou com as pessoas de uma forma que todos amaram e entenderam, mas sinto que ele se esqueceu um pouco do nosso país", disse Francisca Campos, de 68 anos, à agência de notícias AP.

 

Ela foi uma das pessoas que se reuniram na catedral de Buenos Aires para rezar pela saúde do papa em fevereiro, durante sua última internação hospitalar.

 

Refém da polarização

 

Segundo Vera, o verdadeiro motivo da ausência de Francisco foi que ele queria evitar que sua presença fosse usada para fins políticos.

 

"Eu sempre disse que iria à Argentina quando sentisse que era um instrumento para contribuir para a unidade nacional, para ajudar a superar o racha, para tentar unir os argentinos novamente", afirmou.

 

O "racha" a que ele se referia é a divisão que existe há décadas na Argentina entre peronistas e antiperonistas (ou, nos anos mais recentes, entre kirchneristas e antikirchneristas).

 

Há uma crença generalizada no país de que Francisco estava entre os primeiros, algo que ele mesmo negou no livro O Pastor, publicado por ocasião de seu 10º aniversário como papa, em 2023.

 

"Nunca fui filiado ao partido peronista, nem sequer fui militante ou simpatizante peronista. Dizer isso é mentira", disse Bergoglio sobre o assunto.

 

No entanto, ele acrescentou: "Na hipótese de tivesse uma concepção peronista de política, o que haveria de errado nisso?"

 

A explicação não convenceu os argentinos de centro-direita, incluindo os apoiadores dos dois últimos presidentes não peronistas do país, Mauricio Macri e Javier Milei.

 

Antes de assumir o cargo, o atual presidente chegou a chamá-lo de "a representação do mal na Terra", uma observação pela qual ele mais tarde se desculpou em privado.

 

Alguns de seus compatriotas apelidaram o pontífice de "Francisco K" nas redes sociais, devido à sua suposta proximidade com a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner.

 

"Não perdoo o papa por ter se encontrado e tirado fotos com políticos condenados pela Justiça", diz Hugo, de 72 anos, um argentino católico fervoroso e fervorosamente antikirchnerista, referindo-se às duas sentenças de corrupção contra Kirchner e outras autoridades de seu entorno que também foram recebidos pelo pontífice.

 

Papa Francisco com Cristina Kirchner no Vaticano em 2015

Crédito,Getty Images / Muitos argentinos criticaram o papa por sua suposta proximidade com Cristina Kirchner

 

Segundo Vera, o papa se encontrou com pessoas "de todo o espectro político e social da Argentina", incluindo Macri e Milei.

 

Para o ativista, é preciso levar em conta que a doutrina peronista está enraizada na doutrina social da Igreja, por exemplo, em conceitos como justiça social, que é fundamental tanto para os peronistas quanto para os jesuítas, ordem religiosa à qual Francisco pertencia.

 

Nesse sentido, Vera acredita que "há um setor da sociedade argentina que não era tão resistente ao papa quanto era à própria doutrina social da Igreja".

 

Um de seus detratores, o congressista libertário José Luis Espert, acusou Francisco de ser "um grande defensor da pobreza que se sente muito confortável com uma Argentina miserável".

 

Mas muitos outros, ao contrário, celebraram o fato de que o papa queria "uma Igreja pobre para os pobres" e que ele pregava pelo exemplo, mantendo uma vida simples e sem luxo.

 

"O papa Francisco tem sido um exemplo de humildade, comprometimento e justiça social, trazendo uma mensagem de paz em tempos de confronto, lembrando a todos da importância da solidariedade e do respeito (...). O mundo precisa de mais vozes como a dele", declarou o líder social Toty Flores nas redes sociais.

 

Um 'papa do mundo'

 

Flavio Buccino, diretor da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa da Cidade de Buenos Aires, destacou em sua conta no X que, dos últimos papas, Francisco foi "o único que não retornou à sua terra de origem".

 

"Na política, alguns comemoram. Outros, nem tanto. Todos ficarão aliviados: de certa forma, Francisco [era] um 'problema' para todos. Isso diz mais sobre nós do que sobre ele", opinou.

 

Da mesma forma, Vera ressalta que "em vez de culpar Francisco [por não vir], nós, argentinos, deveríamos nos perguntar o que estávamos fazendo que não merecíamos a visita do papa".

 

Uma faixa com imagens de Maradona, o Papa e Messi, durante a Copa América de 2015

Crédito,Getty Images / Maradona, o papa e Messi, três dos argentinos mais famosos da história

 

O amigo de Francisco também destaca que, embora houvesse alguma resistência à figura de Bergoglio na imprensa e nos grandes centros urbanos, ele era adorado na periferia do país.

 

"Eu percorro todo o país e o interior profundo tinha um enorme amor por ele. A grande maioria dos pobres, trabalhadores, assalariados, admirava o papa e não o recriminava por não vir à Argentina", conta.

 

Embora não tenham discutido o assunto especificamente, Vera acredita que Francisco estava planejando uma visita ao seu país como um ato final de seu papado.

 

"Ele não me contou, mas acho que estava reservando a reta final de seu magistério para a Argentina, como se o país fosse a estação terminal de sua longa jornada."

 

No entanto, ele garante que o próprio Bergoglio não sofreu pelo fato de nunca poder retornar à sua terra natal.

 

"Ele estava muito feliz por ser papa, porque sentia que podia ajudar. Ele ajudou a impedir muitas guerras, a mitigar enfrentamentos e a prevenir conflitos em muitas partes do mundo. Ele estava cumprindo a missão da sua vida", diz ele.

 

Embora "tivesse mantido sua conexão com a Argentina o tempo todo", ele diz, Francisco não sentia mais que pertencia a apenas um país.

 

"Os argentinos acreditam que ele era argentino, mas na realidade ele já fazia parte do mundo."

 

Nisso ele concorda com o atual arcebispo de Buenos Aires, Jorge Ignacio García Cuerva — nomeado pelo papa em 2023 — que deu a mesma ênfase ao fato de que seu antecessor, desde o momento de sua eleição, não pertencia mais apenas à sua terra, algo que nem sempre foi fácil para seus compatriotas entenderem:

 

"Nós, argentinos, muitas vezes não deixamos Bergoglio ser Francisco."

 

*Via BBC News Mundo

 

Confira reportagem Jornal da Band:

 

 

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