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opinião Quinta-feira, 03 de Fevereiro de 2022, 19:30 - A | A

Quinta-feira, 03 de Fevereiro de 2022, 19h:30 - A | A

OPINIÃO

Por que os obituários só fazem elogios aos mortos?

*ANDRÉ L. RIBEIRO-LACERDA

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Quando um indivíduo morre, deixa vago as posições, os statuses sociais que ocupava. Independente da contribuição que fez, sua morte provoca um momento de reflexão e avaliação. Como membro de qualquer sociedade o morto tinha interesses comuns com alguns e conflitantes com outros.

Obituários em jornais e revistas científicas, notícias sobre a morte de maneira geral e decretos de luto oficial representam reconhecimento pela contribuição do morto.

Certos mortos são mais celebrados que outros. Na morte, como na vida, os recursos são distribuídos desigualmente.

O cantor e compositor Nelson Sargento e o político, arquiteto e urbanista Jaime Lerner morreram no mesmo dia, 27/5/2021.

No jornal Diário do Noroeste, de Paranavaí, cidade do Paraná, terra de Jaime Lerner, a notícia sobre a morte dos dois brasileiros me chamou a atenção: Jaime Lerner mereceu pouco mais de três parágrafos e o carioca Nélson Sargento praticamente uma página inteira.

A diferença de espaço concedido aos dois pelo jornal refletiria a contribuição dos dois para suas respectivas ocupações?

Nélson Sargento foi muito elogiado pela sua contribuição à música enquanto em relação a Jaime Lerner os elogios foram mais comedidos.

De qualquer forma, uma questão se coloca: por que os obituários em geral só fazem elogios aos mortos?

A morte da cantora Elza Soares em 20 de janeiro desse ano criou uma indignação entre intelectuais e artistas politicamente de esquerda. O presidente Jair Bolsonaro não se pronunciou a respeito e muitos viram nesse “silêncio” uma prova de desprezo pela cultura nacional. Cobraram do presidente uma declaração de pesar e decretação de luto oficial. E alguns sites de notícias chegaram mesmo a nomear os artistas que morreram e não mereceram a atenção do presidente. Nas notícias de todos eles a avaliação foi sempre favorável, praticamente só elogios.

O morto fez grandes contribuições, foi uma grande pessoa. Decretar luto oficial é um reconhecimento da importância da pessoa falecida.

Bolsonaro é o presidente que menos tem usado esse expediente. Usou apenas duas vezes, na morte do ex-presidente Marco Maciel e do escritor Olavo de Carvalho.

Temer decretou luto oficial cinco vezes, Dilma dez vezes, Lula vinte e duas vezes e FHC dezessete vezes.

É claro que os tempos de mandatos são diferentes. Lula e FHC ficaram 8 anos, Dilma 5,4 anos, Temer 2,6 anos e Bolsonaro 3,1 anos.

Mas, no período em que os ex-presidentes tiveram seus mandatos não morreram apenas aqueles que eles decretaram luto oficial. Muita gente ficou de fora, certo?

O luto oficial, assim como o tamanho dos espaços nos jornais também mede a importância do morto. O luto oficial pode ser no mínimo de um dia, caso de Olavo de Carvalho concedido por Bolsonaro, a oito dias, casos do político sul-africano Nélson Mandela, do ex-presidente Itamar Franco e do ex-vice-presidente José Alencar, concedidos pela presidente Dilma.

Outras personalidades parecem ter recebido decreto de luto oficial por suas relações com figuras públicas, casos da ex-esposa de FHC, a antropóloga Ruth Cardoso e da ex-esposa de Lula da Silva, Mariza Letícia.

Mas, olhando a lista de decretos de luto oficial uma questão pode ser feita: qual o critério para decretar luto oficial para uma personalidade e não decretar para outra?

Parece-nos que o critério é a importância que o morto tem para o presidente de plantão. Bolsonaro reconheceu a importância do escritor Olavo de Carvalho, enquanto seus opositores fizeram piada do escritor e, na verdade, comemoram sua morte.

Pois, a decretação de luto oficial é um ato simbólico que não é obrigatório. Por exemplo, o ex-presidente Lula da Silva decretou luto oficial pela morte do ex-presidente da Nigéria UmaruYar’Adua. Por que somente o presidente nigeriano e Nelson Mandela na África?

Ronald Reagan morreu durante o mandato de Lula, mas não teve o privilégio do ex-presidente nigeriano. Margareth Thachter morreu em 2013, durante o mandato de Dilma, mas também não teve o privilégio de outras figuras públicas como Marcelo Déda, petista e ex-governador de Sergipe.

Bolsonaro decretou luto de um dia pela morte de Olavo de Carvalho e não se pronunciou sobre a morte de outros escritores.

Parece-nos que o critério é a importância que o morto tem para o presidente de plantão. Bolsonaro reconheceu a importância do escritor Olavo de Carvalho, enquanto seus opositores fizeram piada do escritor e, na verdade, comemoram sua morte.

Os obituários, enquanto documentos escritos, parecem revelar as crenças e valores daqueles que os redigem; os lutos oficiais a mesma coisa.

Os obituários pretendem ser a expressão cultural das atitudes, valores e ideias de um indivíduo enquanto membro de uma sociedade.

Os obituários acadêmicos, por exemplo, consagram a trajetória de talento e mérito do morto e pretendem apresentar o reconhecimento de seus pares, mas excluem a dimensão crítica que acompanha a vida e o trabalho do morto. Por isso os obituários só fazem elogios.

Maria Cristina Hayashi tem estudado os obituários enquanto uma informação sociológica. Ela fez uma pesquisa sobre os obituários acadêmicos da Revista Fapesp, e mostrou que eles revelam uma avaliação post mortem. Dos 131 obituários, 109 referiam-se a homens e 22 a mulheres o que constata um viés de gênero, dentre tantos outros vieses.

Se os obituários fazem apenas elogios, eles constituem uma informação enviesada sobre a contribuição do morto.

Elza Soares e Nelson Sargento constituíam unanimidade na música? Não há nada na música deles que possa ser criticado? Por que então só elogios? Porque provavelmente aqueles que fazem os obituários são pessoas simpáticas a obra do morto e porque existe certa crença cultural de que não se pode falar mal dos mortos.

O antropólogo Lionel Tiger fez um balanço crítico da obra de seu colega de profissão Clifford Geertz, dizendo que ele espalhou confusão nas ciências sociais. Foi duramente repreendido por Steven Levitt, autor do Freakonomics. Mas, o obituário de Tiger revela a percepção de um colega de profissão que sempre esteve no pólo oposto de Clifford Geertz. Se foi assim durante a vida intelectual de Geertz, por que deveria deixar de sê-lo depois de sua morte?

Os obituários, os lutos oficiais e o reconhecimento da contribuição dos mortos podem ser vistos como manifestações majoritariamente daqueles que compartilham de suas ideias e valores. E que, ao assim fazerem, estão valorizando sua posição, sua ocupação, suas ideias e seus valores.

Para o jornal de Paranavaí, Nélson Sargento foi mais importante do que Jaime Lerner. Isso, provavelmente, tem mais relação com as crenças e valores de quem escreveu do que com a vida dos dois brasileiros.

*André L. Ribeiro-Lacerda – Sociobiólogo e psicólogo.  

 

 *Os artigos são de responsabilidade seus autores e não representam a opinião do Mídia Hoje.

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